- por maria helena weber -
Quando a medida do tempo se perdeu ninguém mais coube nos dias.
Naquele último ano da graça de 2020 os peixes saíram dos mares, aves calaram, florestas murcharam e a infecção se espalhou.
À deriva, decidimos não morrer.
O sol ainda iluminava os condenados quando enterramos
Ricardo e Denise e depois, achamos um lugar.
Feridos, nos escondemos e fechamos as portas.
Pintamos o teto e as unhas de vermelho, trançamos o cabelo, ajeitamos nossos bichos e esperamos.
Antes do primeiro inverno, o fogo saiu dos galhos verdes e últimos livros e espalhou cheiro de amor a céu aberto.
Sonhamos e aquecemos nossos bichos.
Poderia ser um dia de primavera, quando o grito chegou.
Saímos, mas corremos da escuridão densa e implacável assustando nossos bichos.
Talvez, fosse algum ano do verão, quando a luz inesperada apareceu.
Corremos ávidos, mas ela nos cegou.
Amedrontados, seguimos nossos bichos.
Seria outono, quando sobrevivemos e encontramos os outros.
Ofereceram terra, abrigo e nenhuma esperança.
Poderíamos, mesmo assim, alimentar nossos bichos e seguir.
Depois, pisamos em desertos até voltar a ver a lua e as águas.
Amedrontados, guardamos nossos bichos fizemos o plantio e choramos.
Ontem ou amanhã, o tempo das chuvas chegaria.
Tempo de domar nossos bichos e fazer outros filhos.
Tempo de desobedecer e tecer.
Maria Helena Weber, Porto Alegre, ou não, inverno de 2020
O poema integra a obra ‘Porto Alegre em Quarentena’ organizada por Diego Grando e Camilo Raabe e lançada pela Figura de Linguagem e pode ser baixada gratuitamente no link abaixo.
https://tinyurl.com/yypndu8x
Parabéns Maria Helena Weber, adorei seu texto. <3