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  • Foto do escritorbebê

as filhas, as mães, as avós

- por mar becker -



I

resta sempre uma palavra muda na minha boca

sempre a mesma palavra trazida da infância, dissolvendo-se na boca

como uma hóstia

II

eu e minha irmã tínhamos cada uma

uma boneca que era como filha, e essas cuidávamos com um zelo sem medida

nas noites de frio, deitávamos elas nas nossas camas, para dormirem junto

e havia toda vez um beijo de boa-noite, e pelas mãos íamos cercando seus corpinhos de pano com relâmpagos

.

éramos muito meninas

os cabelos ainda muito finos, como se tivessem sido feitos por bichos da seda. na pele, os sinais da lua, do eclipse. a sombra no púbis, no umbigo

o sono respirando

nos lábios entreabertos. uma mesma noite atravessava os anos pela boca da mãe até nossas bocas

e das nossas bocas até a boca das bonecas

num ciclo de perpetuação

da fome

VI

sempre que costurava, minha mãe parecia eterna. eu me sentava no chão mesmo, e à sombra do seu corpo meu corpo crescia. quase não falávamos uma com a outra

quando ocorria de falarmos era numa língua composta por uma única palavra, hoje impronunciável

tudo em mim era medo. sentia, por exemplo, que se tocasse minha mãe poderia vir a romper a linha

a única linha invisível

entre tantas outras, visíveis, desenrolando-se continuamente dos carretéis na máquina de costura. por isso não a tocava. e seguia crendo que assim ficava assegurada a manutenção de algum tipo de equilíbrio de cena

.

na mesa de corte, uma almofadinha crivada de alfinetes e agulhas

a janela aberta, e a luz cintilando na ponta da agulha mais alta, como o dedo

de um deus doméstico de inox

VII

em menos de uma semana o chão ficava outra vez tapado de retalhos

eu e minha irmã juntávamos os maiores

pondo-os numa sacola

era com eles que costurávamos os cueiros para nossas bonecas

(coisa malfeita, de um artesanato inábil)

na hora de enrolar os corpinhos, muitas das remendas se abriam

ainda não tínhamos mãos para o trabalho maligno da sutura

.

as manequins nos acompanhavam, seus olhos vazios

eram mulheres paradas no meio do caminho, estátuas de sal

bíblicas mulheres de ló


foto: Malu Baumgarten

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