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roseira


- por malu baumgarten -


Os dias todos sem sol dão em meus nervos sim. Acordo já na agonia, a luz cinza que atravessa a janela dizendo aqui nesse peito, escuridão vem aí a mais de eu não gostar. Assim já era lá na terra, quando menina o sol da cidade fria me aquecia a carne e a luz entrava olho adentro, abria tudo. Sentada na raiz da árvore velha, a gurizada correndo e gritando à volta, eu nem. Calada, no caminho do mundo outro. O raio batia no livro, ricocheteava na íris e pronto, a vida que se arreganhava era diferente, de viver sonhada. Imaginação? Ah, não me faltava! Vontade eu tinha, de sair estrada afora, e tanto fiz, fui.

Em maio a cidade era limpa, lavada e passada a ferro, dizia a mãe, no céu azulzinho uma ou outra nuvem branca, as folhas das árvores bem paradas, nada nada se movia. Carros, havia uns poucos, passavam e faziam barulho bastante, mas não como agora, o inferno na terra, e a fumaça doente que há de ser invenção do demo, do tanto que arde nos olhos. O mundo inteiro e bom era ali, Porto Alegre e as estradas do Rio Grande do Sul, um casaco de couro com o retrato do Che Guevara que a irmã usava, podia ainda, antes dos milicos se arvorarem em macacos, depois sumiu. O casaco e um monte de gente, caput.

Na estrada com o pai, Carazinho, Ijuí, Santo Ângelo. Santo Augusto muito pobre, um hotel com banheiro compartilhado, pés descalços no frio da noite. A rádio Guaíba o pai ouvia, o seu correspondente Renner, as últimas notícias da Associated Press, France Press e UPI — Tchecoslováquia: tanques soviéticos invadem Praga; tropas americanas desembarcam em Saigon, a sua gasolina é Ipiranga; Ipirela, como é bela! O carro era um Volkswagen, o carro do povo, dirigia e falava o pai, sabia tudo, mas não queria gostar do Ronnie Von nem dos Beatles, era só choro e samba e música nativista, ainda assim era sabido dos livros, das histórias de riqueza e pobreza do homem, tinha um pensamento largo que espalhava longe, eu ouvia e bebia aquelas ideias, o pai era um universo. Lá fora o pampa, a serra, as manhãs geadas do inverno.

O gosto pela aventura não sei dizer se foi o pai ou a mãe que deu. Vai ver nasceu aqui dentro sozinho, por conta, uma fome sem tamanho, curiosidade maior que o medo. De ser menina não entendia. Nos livros os heróis eram meninos, Um capitão de 15 anos, Os filhos do capitão Grant, Raptado!, na escola as meninas andavam em grupinhos e riam de mim. Era eu diferente então? Histórias da vida que foi, fiquei eu, mulher velha, a mesma dentro, a do sol no olho, dos livros lidos na raiz da árvore grande.

Tanto fiz que fui, deixei o chão para trás e vi o mundo se alargar, viajei aos confins, voltei, amor na humanidade não tenho, tinha. A mãe a deus dada, o pai velhinho quase não se entende, surdo e meio cego, o mundão com pragas maiores que jagunços e pistoleiros, que é da Bahia de Jorge e do João de Minas, onde a Amazônia de Márcio? O que sei é que dias sem sol me dão nos nervos, muito. Caminhar no gelo caminho, a terra gelada não me abisma, mas um raio de luz para iluminar o fundo do olho há que haver.


© 2021 texto e fotografia de Malu Baumgarten

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