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a casa dos ursos

- por maíra baumgarten -



Da janela do sétimo andar vê-se o horizonte urbano circundado por morros. Ao longe, imensos conjuntos habitacionais de ínfimos apartamentos sujam a paisagem, antes arborizada. As casas e prédios diversos sobem a encosta, restando uma faixa que diminui todo ano. Olhando com atenção percebem-se as ruas, visíveis pelo brilho dos faróis.

A tarde cai lentamente, as calçadas encontram-se cobertas de uma névoa outonal e a rua da margem ostenta ricas sombras de arvoredo no interior do córrego. O caminho até a Casa dos Ursos é longo e acidentado. Passa pela muralha do grande edifício que oculta uma favela urbana inserida bem no meio de um quarteirão e segue até o colégio em direção à pracinha que fica na confluência de três ruas. Depois, a lomba híbrida que leva de uma avenida à outra através dos muros do Cemitério Israelita, de um lado, e dos estudantes de marketing, de outro. Na esquina o crematório de más lembranças.

Ao chegar ao topo há opções: descer pela rua dos mortos até a pracinha distante algumas quadras da casa, ou mais adiante pelas ruas cheias de um casario antigo até o destino final. Nuvens cobrem o céu e o entardecer se faz frio no outono de calçadas matizadas pelas folhas coloridas de tons vermelhos, marrons e amarelos.

Ao longe já é possível avistar a habitação – quase branca com suas janelas vermelho-cereja e seus ursos residentes nas paredes anciãs. Aberta a porta, no interior o silêncio é audível. O comprido corredor que dá acesso à cozinha e ao quintal está às escuras. A direita, no escritório a gata dorme em sua cesta. Os livros das estantes parecem reclamar do abandono.

Na sala, o sofá preto, os quadros coloridos e modernos e a mesa com suas cadeiras repousam harmonicamente dispostos e a janela com suas antigas venezianas abertas mostra o quintal-jardim, suas árvores, canteiros e flores. Há, no ar, além do perfume, algo etéreo. Uma voz que canta antigas canções, todas tristes. Uma presença que se faz poesia e solidão.

Os fantasmas da casa iniciam sua ronda, soando passos incorpóreos na velha escada, que estala e geme com as contrações do frio. O caminho para cima percorre pequena galeria de arte. Serigrafias, gravuras, telas contemporâneas a cobrir a parede amarela. No alto, o assoalho também se manifesta, entrando no coro de lamentações da madeira.

Os dormitórios estão, como sempre, impecáveis, assim como o quarto-de-banho com sua antiga banheira que ganhou tinta preta. A janela mostra as árvores que se agitam ao vento e os telhados vermelhos das casas vizinhas.

No aposento da frente reina a grande bateria. Durante o dia seus rufares competem com o ressoar contínuo do trânsito da movimentada rua, agora faz silencio, respeitando os espectros tardios. Ao longe canta o destemperado galo Damião, que perdeu o sentido de tempo e agora cacareja quando lhe apraz. Dentro, a quietude da noite que se aproxima.

Percorro os caminhos da casa e não te encontro. Lembro do que compartilhamos, das sete mulheres que aqui passaram suas vidas. Lembro dos livros que lemos e das vezes em que me contavas teus sonhos (felizes, por vezes angustiados) durante o café da manhã.

Tanto amor em ti, alegria e tristeza infinitas. Sabedoria também, a iluminar as manhãs. Os versos sempre a aflorar, o sonho em cada palavra. Um estar no mundo adiantado, intempestivo e intenso como uma chuva de verão. De ti ouvi as canções que me acompanham sempre. Contigo aprendi a amar a música e a querer cantar.

Ao emergir das lembranças percebo que estou no coração da casa e que ela pulsa feliz. Uma última visita à saleta-biblioteca me coloca frente a frente aos velhos amigos de minha infância e adolescência. Outros companheiros vieram depois desses, mas não tiveram a mesma importância, o saber compartilhado, as descobertas e deslumbramentos.

Em frente à escada, a porta da rua espera paciente. Apuro o ouvido e sinto, ao longe, soarem as notas de um tango, dramático e apaixonado. Danço pela casa em despedida. Meus pés percorrem os caminhos do tempo e das memórias para logo aquietarem-se no silêncio da noite que chega.

Lembro da gata e do meu propósito, encontro suas tigelas e as preencho com comida e água. A porta, então, se abre e torna a cerrar-se guardando a casa, suas quimeras, labirintos, recordações e o sono-sonho da felina.

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