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asas - 7

Atualizado: 29 de mar. de 2021


da série a história de Johnny Skai


- por malu baumgarten -


Olhou por cima do ombro direito e viu a asa, grande e pontuda como a de um anjo de cemitério, mais branca do que a neve azulada que cobria a montanha. Sentiu o sol na pele a amenizar o frio, fincou os bastões no chão e preparou-se para voar. Os esquis deslizaram, devagar a princípio, e ele ria excitado, à medida que tomava velocidade e seu corpo se alçava no ar, os pés tocavam o chão e voltavam a subir. “A melhor parte do ato de esquiar é a sensação de voo,” costumava dizer aos parceiros. A visão da asa, porém o perturbava. Estava agora semiaberta às suas costas, com penas muito alvas e macias, e ele, constrangido, perguntava-se se os outros a haveriam percebido.

O vilarejo de Whistler, em British Columbia, é um lugar onde o vento assobia sem parar. Estende-se ao pé do Oceano Pacífico, e apesar das geleiras no pico das serras, a presença do mar ameniza o frio. A montanha Blackcomb, cujo nome significa Crista Negra, sempre fora a favorita de Johnny. A elevação deve o nome às altas escarpas na forma de uma crista de galo, coberta por camadas de líquen ancestral, que se tornou negro ao longo de milhões de anos. Com sua neve flexível e úmida e descidas infinitas, proporcionava uma experiência muito diferente daquela das pequenas colinas da Província de Ontario, onde a prática do esqui era uma atividade prosaica, para distrair famílias.

Depois de 30 anos de sua última visita a Blackcomb e pelo menos dez sem esquiar, Johnny sentia agora um prazer intenso. Deslizava trilha abaixo rapidamente, os outros esquecidos para trás, a mordida do vento suavizada pelos óculos de proteção. Impulsionou seu peso para cima com os bastões, e as pernas lhe falharam, dobrando-se até que os joelhos se arrastaram no chão gelado. Teria rolado montanha abaixo não fosse pelas asas, que se abriram enormes e alvíssimas, elevando-o acima da Crista Negra, da montanha do Assobio, das florestas de pinheiros bem pequenos, das casas da estação de esqui e da vizinha cidade de Squamish. Voando sobre o mar deu-se conta de que já não poderia mais andar, que suas pernas jamais lhe dariam o impulso necessário para fazer-se flutuar no espaço com os esquis, e chorou lágrimas que se mesclavam a uma chuvinha fina e salgada e evaporavam antes de perder-se nas águas do oceano.

Experimentando as asas mergulhou em direção ao mar e tornou a subir, sobrevoou a geleira de Hortsman e mais alto ainda, o topo gelado da Crista Negra, acima da coberta de líquen e dos ninhos das aves de rapina. Voava espantando gaivotas e falcões, aos solavancos, ora com graça inesperada, ora com a certeza de que enlouquecera, o êxtase do voo em concerto com a certeza da morte. Sentia crescer a fadiga, e sonolento abriu as asas em sua extensão total e deixou-se planar dentro de uma consciência que se movia como a maré, aqui e não mais, aqui e não mais... Volta e meia lembrava-se das pernas, de passos, de andar e de erguer-se, e chorava baixo como uma criança esgotada.

A mulher o encontrou encolhido no chão, numa poça de urina ao lado da cama, nu e abraçado a uma toalha, deixando escapar aqui e ali um pequeno soluço. Ajudou-o a levantar-se e arrastar até o banheiro as pernas quase inúteis. Ele a abraçava e pedia: “Coça as minhas costas; aqui, não ali, mais pra cima.” Ela levou a mão ao dorso dele e sentiu o volume dos ossos transmudados, pontudos como asas de anjo de cemitério.


A foto que ilustra esse capítulo é de ©Anna Baumgarten e foi tirada em British Columbia, Canadá.

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