- por ethel feldman -
Querido Gad,
O mar ontem galgou a estrada levantando todas as pedras da calçada. Se a natureza do homem fosse a de uma criança, libertava todas as palmeiras do asfalto. Os pés largariam os sapatos e o coração pediria perdão. O mar galgou a estrada e você me visitou sorrindo lembrando nossas aventuras na areia. O corpo enterrado restando somente a cabeça e você cantarolando:
- Que venha a chuva e nos molhe por fora. Que venha o sol e nos aqueça por dentro...
Se eu ameaçava chorar você gargalhava e gritava:
- Que venha o sol e a chuva enquanto padeço...
Você dizia que eles eram como um poema, sem medo dos intervalos sombrios.
Na noite de sua partida o céu ficou carregado de estrelas e eu tive a certeza que você ia feliz. Um abraço apertado selou nosso desejo de vida. Não houve promessas de novo encontro, nem mágoas na despedida.
Os anos foram passando. O silêncio casou com o meu cansaço, mudou de cor e virou regaço.
Agora que a vida se aproxima do fim, o mar ganha coragem e levanta o asfalto da estrada.
Seus pais deram-me seu endereço, avisaram que você nunca respondeu uma única carta. Perguntei se estariam certos do seu paradeiro. Responderam que sim.
Fica a promessa de que me bastará que você a leia. A nossa cumplicidade sempre foi silenciosa.
Hoje, dei conta do pó que mora em cada móvel da minha casa. Das migalhas de pão que ficaram esquecidas no prato, do lamento silencioso do meu coração agora tão solitário. Acordei cansada da demora que se fez continuada, preguiçosa, invasora do tempo presente. Levantei cada perna pesada, esquecida que um dia correram ligeiras. Olhei para o espelho e vi a vida em busca da paz derradeira. O passado ganhando o presente, engolindo o tempo, inventando outro segundo.
Eram seis da manhã quando o mar resgatou a nossa praia, Gad.
Se o tempo fosse outro, você iria sorrir. Com uma pedra em cada mão rezaria uma oração. A que aprendemos quando nascemos um no outro. Preguiçosa, porque a reza se pede lenta quando amamos.
- Olha esta pedra, Gad!
Em cada pedaço de terra liberta, nasce uma palmeira. Semente de uma nova existência.
Levanto do chão as pedras que o mar esqueceu. Por nós, neste compasso que agora danço.
Beijo, Cleo
texto e arte de Ethel Feldamn
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