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frio de verde e espuma

Foto do escritor: bebêbebê

Atualizado: 19 de jul. de 2024

- por simone magalhães brito -


O mar chegou primeiro. Não se importou quando construíram a cidade dos mortos. Indiferente, deixou que fossem plantando cruzes, flores de papel e chorassem - era sal com sal. Nos dias de ressaca, ria daquelas mortes apertadas e secas, braços colados no corpo, sem cavalo marinho, nem rabo de arraia. Mais tarde, no preamar, dizia calmo: vem morrer comigo, de água-viva, virar coral.

A última casa do pescador, apesar de caiada e arrumadinha, era pobre como o dono. A filha mais nova tinha uma coleção de vidros de perfume em formato de anjinho, um presente dado pela patroa da mãe. Os anjos eram gordinhos, mas muito embaçados. E as tampas no lugar das auréolas já estavam descascando. A menina colocou os anjos numa ciranda em torno da pequena cruz e a dança dava mais pena do que do fim do homem.

Toda a gente que passava pelo cemitério queria ver a ciranda de anjos que a filha fez pro pai morto. Esqueciam de admirar o verde infinito para lembrar que Jonas, além de pescador, era cantor, fazia serenatas pras almas e a sua, agora, tinha que viver dos anjos de perfume que, certamente, eram roucos. Obviamente que alguém, andando pela noite, ouviu a festa dos anjos. E ninguém mais quis se admirar do pretume do mar dormindo, nem de como as estrelas deixavam a água doce, só queriam ouvir as vozes rouquenhas, as tais crianças encatarradas que não conseguiam dormir e assombravam quem voltava do bar.

O mar não gostou daquele movimento: o pescador era dele, o espanto e o ruge-ruge também. Antes disso, obviamente que as baleais já tinham submetido ofício reclamando de mais um Jonas perdido, as sereias queriam seu afogado, embaixo de suas escamas, estaria seguro. As ondas queriam todos os olhos: vivos e mortos.

Na guerra para levar o pescador para o seu lugar de direito, primeiro veio a areia e cobriu os túmulos. As ondas avançaram e devem engolir tudo antes de novembro. Os mortos velhos, deitados no caminho entre Jonas e o mar, estão felizes com a mudança, com a possibilidade de nadar. Para os anjos, será a primeira vez que encontrarão a água salgada e já se veem como peixinhos. Só os mortos jovens sofrem: como ainda recebem flores e lágrimas, se assustam com a possibilidade do esquecimento. Não querem se afogar, muito menos morrer de novo. Jonas quer saber apenas se ainda vai poder cantar.

Quem passa pela frente do cemitério já não lembra da ciranda de anjos ou do canto do pescador, apenas se admira dos nacos de túmulo e de cruz que as ondas engoliram e pergunta se aquela fome toda é verde ou azul. Ninguém sabe. Apenas respondem com a única certeza possível: tudo é do mar.

O mar voltou a ficar contente e deixa borboletas de concha pela areia.

 

***

Alguma coisa muito errada aconteceu na relação entre a morte e o mar quando Jonas morreu de doença. Desde o início, estava combinado que ele seria do mar e que abriria os braços para a tempestade dizendo:

-Odoyá, cheguei!

-Chegue dar um abraço, meu filho.

A miséria que, na sua distração e sabida falta de cuidado, deixou a doença roubar o menino de Odoyá foi punida por deuses de várias religiões, mas isso não diminuiu a revolta do mar que continuou batendo forte contra os arrecifes. Uma vez que dívidas antigas ainda estão sendo cobradas, ninguém percebeu como essa custará muitas calçadas e passeios, avenidas inteiras, carros e caminhões.

Como Odoyá, Jonas não se contentou com a promessa dessas porcarias de pedaços da cidade e, por isso, era um morto perplexo. Todo mundo estava acostumado a ver mortos tristes, querendo ficar mais um pouco, ou pacificados, agradecendo o primeiro descanso na vida, mas aquela cara de espanto, de indignação com o atendimento prestado, a falta de respeito com o cliente, era a primeira vez.

Para resolver, alguém teve a ideia de enterrar o violão junto para ver se melhorava a cara dele. Além de perplexo, o morto estava irritadíssimo, onde já se viu enterrar um violão? Ia tocar pra quem? Jonas não tinha nada para deixar de herança, a roupa de domingo já era de uma eternidade de domingos, o rádio estava quebrado, o barco era de aluguel, o chapéu estava se desfazendo, o relógio atrasava. Como o violão era a única coisa boa e também apertaria os pés do pescador, as conversas lembraram da ruma de cantadores pobres sem violão.

E o violão saiu pelo mundo cantando, tanto sereno pra louvar, feliz de ter se livrado do último claustro da claustrofobia, de não precisar ficar à espera do bom ladrão.

Na hora, Jonas ficou emocionado, nem notou o jeito bandoleiro do objeto que foi embora sem se despedir. Depois, arrependimento e mágoa. Nunca é a mesma coisa cantar sem o violão, mesmo que ele seja um bicho falso.

Ninguém pensou na agulha de tecer tarrafas. Jonas não conseguiu ver a mão de rapina que, na hora do velório, colocou sua agulha no bolso. Não fosse isso, a filha teria lembrado como consertar as redes rasgadas, ponto por ponto, ajudava o tempo a passar. E os meninos vinham pedir: o senhor conserta a rede do nosso gol? Pra raiva, a agulha era muito melhor que o violão, tirava notas de esquecimento. Sem encontra a agulha, a filha deixou uma florzinha do mato nas mãos do pai.

Morrer é mesmo muito revoltante e Jonas, que nunca tinha pensado nisso por achar que tudo seria conforme o plano, estava muito agoniado. Os anjos lhe irritavam. Queria cantar e a voz não saía. Pensou muito em sua agulha que, achando pouco, levaram junto com a vida, em como se concentraria em cada ponto para que fossem todos perfeitos e, na hora de voar, jogados ao céu e caídos no mar, soubessem como abrir e fechar a boca, desejar tudo e aceitar até o pouco.

Pelo mundo, nas mãos de um bruto que só pensava em matar os peixes, a agulha, que sofreu desde o momento que o pescador começou a ter febre, ia para sempre se espantar com as pessoas não saberem que o importante é o vôo da rede: arregalar os olhos para engolir o azul, afundar fechando os olhos no verde. Ia passar a vida dando nós sem sentido, indo e voltando sem vontade, trabalhando sem nenhuma alegria. De tanto desconsolo, a agulha foi virando gente para dizer todos os dias: Jonas, meu amigo, que saudades de você.

Se a agulha pudesse morrer, um dia encontraria Jonas, mas era de plástico e vai assombrar por quatrocentos anos ou mais pela terra. Talvez o mundo até acabe e ela vai continuar jogada em algum canto, ainda pensando, surpresa com tudo que começou a sentir por causa de uma pessoa.

Quem escreve essa estória considera uma afronta que o que começou como a doença de um pescador, um pequeno descuido da miséria, venha a se transformar em centenas de anos de sofrimento para uma pequena criatura, trabalhando e sentindo saudade. Parece uma maldição.

Infelizmente, só há duas esperanças: o mar avançar, engolir a casa do ladrão que fica bem pra lá da sepultura de Jonas e os dois, homem e agulha, se tornarem parte de uma única corrente fria de verde e espuma. A outra, mais próxima, é que a miséria (culpada pelas suas distrações) faça todos acreditarem que Jonas e sua agulha continuam vivos e alegres naquela rede que alguém vai lançar ao mar, buscando o céu, eternos antes de tudo.

Quem escreve, acredita e espera pelo mar.

 

***

 

Quando uma onda ia levar o último anjo de vidro, a menina o salvou puxando pela cabeça.

- Esse aqui é meu! Se quiser, venha buscar.

E correu, correu muito. Chegou do outro lado da cidade, mas continuou correndo, pegou vários ônibus e mais dois carros. Prometeu que aquele último anjo de perfume não ia virar peixe.

Achou um lugar no meio do sertão e, muito inocente, acredita que vai viver por ali e, enquanto o anjo lhe guarda do alto da pedra quente, o mar nunca vai chegar.

Um dia, quando acordar velha, a filha de Jonas vai parar de sonhar. Será como se tivessem lhe jogado uma rede de arrasto e, coberta de sargaço e escamas, estará na beira do mar, fria de verde e espuma.



- foto bebê baumgarten -


 

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