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kalahari

Atualizado: 17 de nov. de 2020


- por bebê baumgarten -


Rodapés como aqueles eram raridade. Pintados de branco, mediam quinze centímetros de altura e tinham uma nervura na parte que une a parede ao assoalho. Conservavam certa pompa, embora estivessem carcomidos de cupim aqui e ali. O assoalho não deixava por menos. Parquê original colocado sobre o chão de cimento, feito por operários que possivelmente há muito tinham batido as botas. Vicente olhou demoradamente para a cena. O encontro das paredes formava um triângulo não muito simétrico, aliás, como em toda a casa. Mexeu de leve a cabeça. Doía e pesava. Sentiu sede. Pensou no camaleão, aquele específico que habita o Kalahari e passa um sufoco danado na época das secas. Dizem que é o animal mais preparado sobre a terra para enfrentar a sede.

Virou a cabeça para o outro lado, a fim de aliviar o pescoço enrijecido. A cristaleira barata tinha pequenos pés redondos e ficava quase no nível do chão. Mesmo assim era possível enxergar a poeira que se acumulava embaixo do móvel. Deu de ombros. Aquele era o menor de seus problemas, pensou. No marco da porta, muito alto, em harmonia com o pé direito do antigo sobrado, podia ver muitas irregularidades e remendos. Lúcia era uma exímia pintora de paredes e tinha um prazer quase obsessivo pela casa, por sua história e por cada recanto da velha construção. Gostava de pintar paredes, lixar, sanar os cupins e deixar o madeiramento o mais ajeitado possível. No chão, entre o marco da porta e a cristaleira, brilhava uma pequeníssima teia, tecida com orgulho e determinação por uma minúscula aranha. Vicente se demorou olhando a dona aranha trabalhar. Adormeceu de cansaço alheio.

Abriu os olhos e sentiu todo o corpo. Parecia que tinha levado uma surra. Não havia um só membro ou músculo sem dor. Mexeu-se com cuidado. A sede aumentara e tornara-se agora insuportável. Nem o camaleão do Kalahari seria capaz de suportar. Anoitecia e logo viriam as baratas e passariam rente à sua cabeça. Estremeceu. Tentou gritar por Lúcia, mas no lugar da voz saiu uma espécie de rugido, fino e esganiçado. Mexeu o corpo com sacrifício fazendo uma meia-lua com o troco e as pernas. Sua visão agora ia diretamente para os pés do sofá. Como odiava aquele trambolho preto, que sequer era confortável, no meio da sala.

Na luz difusa da tardinha, deitado em concha, já quase em posição fetal, vislumbrou um movimento suave e silencioso. Ainda antes de perder os sentidos mais uma vez, percebeu perto de si o cabecear típico dos gatos. A gata se aproximara e fazia seu ritual de cabecear, virar de costas, esfregar o rabo, cabecear novamente até, por fim, deitar-se ao lado do seu amigo humano.

Vicente, seco como um camaleão, doído e exausto, deixou-se adormecer no parquê do antigo sobrado. O teto lá no alto afastava-se cada vez mais até sumir do seu campo de visão.

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