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a dor - 9

Atualizado: 11 de jan.

da série a história de Johny Skai - por malu baumgarten -


A sala de espera do departamento de oftalmologia do hospital Mount Sinai está cheia. Sob a luz artificial, os pacientes aguardam, mergulhados no mundo virtual de seus telefones celulares. Alguns, mais velhos, leem um livro ou apenas esperam, mãos cruzadas no colo, os olhos que já veem pouco voltados para a vida interior. O hospital é velho, e a sala é sombria. Há muitos assentos, enfileirados ao redor das paredes e também no meio do aposento, em alas que dão as costas umas para as outras. Clara está sentada próximo à entrada, com Johnny na cadeira de rodas enviesada à sua frente. Entediados, os dois tentam se distrair de uma espera de quase cinco horas no ambiente penumbroso. Entre esporádicas conversas, Johnny navega o Instagram a procura de fotos interessantes, e Clara lê seu livro, El Astillero, de Onetti, em espanhol.

Clara imagina a tarde de outono se esvaindo lá fora. Pensa, contrariada, que quando deixarem as sombras do hospital, serão saudados pela escuridão da noite que cai cedo nesta época do ano. Para ela, que é uma criatura solar, os meses de frio são penosos. Lembra do verão passado no Brasil, dos dias infinitos à beira do mar de Santa Catarina, da vontade que tem de viver lá o resto de seus dias. Foi na viagem de volta da praia que percebeu a gravidade do problema com os olhos de Johnny. Dirigindo debaixo de chuva pesada, ele teve muita dificuldade para controlar o carro. No retorno a Toronto, ela insistiu numa visita ao médico, e ali estão, nesta espera interminável pelo solicitadíssimo doutor Margolian, tão jovem e já uma celebridade no seu campo de especialização.

— Clara, aquela moça lá atrás parece muito com minha filha Abigail, eu acho que é ela, — disse Johnny, que havia estado silencioso contemplando o fundo da sala.

A ansiedade dele era evidente, e Clara teve pena. Sabia que os filhos se recusavam a ter qualquer contato com ele desde que deixara Tracy, dez anos atrás. Ouvira a história muitas vezes. Depois da separação, Tracy dissera às crianças que o pai era um egoísta em plena crise da meia-idade, que os abandonara à própria sorte para andar atrás de mulheres e viver uma vida de playboy. Johnny, que estivera deprimido e ausente por anos antes de partir, trabalhava longas horas, e a mulher controlava a casa e o relacionamento com as crianças. Os filhos aceitaram a versão materna. Clara acompanhava de perto a futilidade dos esforços que ele fazia para se comunicar com as meninas mais velhas, agora já na casa dos vinte. E ouvira pessoalmente as conversas telefônicas com Tracy, que demandava dinheiro, e frente à recusa, o ameaçava com a promessa de que seria sempre desprezado pelos filhos.

Por anos, depois do encontro, Clara conservaria uma dolorosa memória dos eventos daquela tarde. O doutor Margolian saiu ao corredor e chamou:

— Abigail Skai.

A mocinha dirigiu-se à recepção, movendo-se primeiro para a esquerda e depois à frente, de maneira a evitar a área onde o pai estava sentado. Olhos arregalados, Johnny endireitou os ombros, as mãos firmes nos braços da cadeira de rodas, todo ele expectativa, enquanto a filha passava sem olhar e desaparecia dentro do consultório médico. Muda, Clara esperou que ela saísse, o peito apertado, sentindo a dor do companheiro, sua enorme esperança, o vazio em que se perdia o amor pela filha, ficaram os dois engolfados por um tempo estático, o ar opaco que os envolvia apenas alterado aqui e ali pela eletricidade do desejo daquele homem.

Quando Abigail finalmente voltou ao corredor, o médico a acompanhava, olhos claros atrás de óculos redondos, longa barba ruiva e quipá no alto da cabeça, ela esguia e de cabelos escuros, envolvidos numa conversa sem som e sem fim, e Johnny grudou as mão nas rodas de sua cadeira, fez o turno à esquerda, postou-se em frente a eles e esperou

esperou

esperou,

com a cabeça erguida em direção a filha que, em pé, teria que olhar para baixo para ver seus olhos, a filha que mirava a parede acima dele, até que afinal, sem poder aguentar-se mais, falou, e sua voz saiu baixa e quebrada

— Olá, Abigail,

e ela constrangida baixou o olhar, ignorando Clara, que em pé atrás dele crispava os punhos, deparou-se com aqueles olhos de cachorro leal, por um longo minuto pareceu pesar os sonhos e desejos do homem na cadeira de rodas e respondeu,

— Oi, pai,

antes de virar-se para o médico e continuar a conversa, como se fosse ele um importuno mendigo implorando esmola, um incômodo inevitável a ser varrido para o lado o quanto antes.


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