-por mar becker -
I
educar os olhos. cegá-los
aprender tudo pelo mar, que espelha o céu - que não tem fim
deus é a terceira margem
a partícula de sal, o grão de areia
os chineses colocavam pérolas nas bocas de seus mortos, para que fizessem boa travessia
no mesmo mar de eternamente, da pérola de eternamente, o barco não cessa de partir
há no méxico uma espécie de borboleta que tem asas transparentes; chama-se "greta oto"
tudo terá valido a pena se antes de morrer eu puder ver um segundo de mundo pela asa de uma borboleta
II
vento sobre vento: assim diz o i ching, no hexagrama 57
li em algum lugar que o i ching é um dos livros mais antigos da humanidade, tendo pelo menos três mil anos de existência
a libélula sumindo do meu campo de vista
uma das hipóteses sobre a origem do nome "libélula" é de que ele viria do termo latino "liber"
também daí vem "livro"; vento sobre vento
na palavra, o silêncio
amar e morrer
o ideal de um livro é que seja escrito numa asa
III
o fim de uma estação as janelas semiabertas, as casas. a chuva, que parou há pouco o céu nascendo e morrendo tantas vezes à superfície de uma poça d'água, na calçada os espelhos a promessa de dias novos orientando aquele que atravessa uma cidade ou um deserto os rostos, os rastros as cinzas dos nossos mortos espargidas o pó que se ergue no voo da mariposa
Mar Becker, A mulher submersa, ed. Urutau
Foto © 2020 Malu Baumgarten
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