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à parte do reino




- por mar becker -


I


as mulheres são todas iguais


todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje, iguais

às de amanhã


que não se engane o meu amor, porque em breve

a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o que não pôde dizer pela sua


eu farei o mesmo, pela boca da próxima

e assim sucessivamente


é uma maldição

entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma

uma só


com o passar do tempo nos tornamos todas iguais


juramos sempre o mesmo amor no começo

rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta, no final


sempre a mesma garganta

a mesma língua de gárgula


.


as mulheres são todas iguais


por isso quando caminho pelo bairro me olho nos olhos que me olham

sou a moça parada à janela, translúcida


sou a que atravessa o dia pensando em rosas


do povo

de hiroshima

de gertrude stein

de ninguém


estou na rua, mas estou em casa

estou em mim mesma como no meio de uma catedral vazia, o sino sendo tangido pelo silêncio


.


o meu amor não sabe


se disser o nome de uma mulher, dirá o nome de todas


somos em certo sentido indeléveis como ar. somos todas marias

linhas de sombra e luz, fina fenda


somos um pássaro

e há um mundo inteiro suspenso nos fios de nossa respiração


.


li esses dias que os ciclos de sangue de mulheres que moram juntas tornam-se sincrônicos. vou mais longe, digo que também passamos a nos encontrar


em sonho. nessas horas, até chamamos umas às outras pelo nome


(em voz baixa, para que não se rompa

o fio de prata)


.


as mulheres são todas iguais, basta olhar com atenção


veja, por exemplo:

pouco depois de se separar de ted, sylvia se suicidou usando gás de cozinha

mais tarde, assia, a nova esposa, repetiu o ato


a mesma cena

o mesmo gás

o mesmo homem


as mulheres são todas iguais


.


pelas mãos de salomé, também eu servi a cabeça de joão batista numa bandeja


pelas mãos de lucrécia bórgia, também eu misturei cantarella no vinho

e terminei o dia envenenando um marido


.


esta noite o meu amor se deitará com sua nova namorada. nela estaremos todas


repetíveis, labirínticas

espelhos

espectros umas das outras


de madrugada, ele será seduzido com beijos e cheiros. quando descobrir que é a mesma mulher de sempre


o mesmo antigo demônio fêmeo


nessa hora será tarde. já a terá fecundado

já terá continuado nossa linhagem má


numa filha




*




esta série, ainda em construção, dedico-a a algumas das muitas poetas vivas do nosso tempo. são mulheres que leio e que me acompanham, me influenciam. ao longo dos poemas que a compõem, há passagens remetendo a versos de autoria de algumas delas. discrimino-nos abaixo.


adriane garcia (“o mundo inteiro / depende / do pulsar cardíaco / do pássaro”). ingrid morandian. isabela penov (“aves marias – ou a revoada”). lisa alves. maiara gouveia (“antes que se rompa o fio de prata”). mariana botelho (“o silêncio tange o sino”). nydia bonetti (“quem sabe uma rosa / do povo / de hiroshima / de gertrud / de ninguém”). raquel gaio. roberta tostes daniel (“linhas de sombra, escalas de cinza”). samantha abreu. wanda monteiro (“abre a fina fenda”).


Mar Becker, A mulher submersa, ed. Urutau

Foto © 2020 Malu Baumgarten

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